Quelé: O Sargento que foi cangaceiro, é um tema que tem sido objeto de muitas pesquisas pelos estudiosos do cangaço. Por vezes pintado como um bandido, outras vezes visto como valente combatente ao grupo de Lampião, Quelé acabou se tornando uma figura polêmica. Neste texto buscamos expor uma síntese do que os pesquisadores publicaram sobre essa figura, complementado com a transcrição de documentos Oficiais. É o que passamos a fazer.
- O Sargento que foi cangaceiro, uma versão sem Lampião.
Clementino José Furtado, era proprietário do sítio Santa Cruz, localizado à 6 quilômetros do centro da cidade de Triunfo, Pernambuco. Quelé, como ele era conhecido, liderava sua vasta família que residia nas proximidades daquele sítio e sobrevivia da agricultura.
Há muitos anos, Quelé. e seus familiares, eram eleitores dos candidatos apresentados pelo Prefeito daquela cidade. Em 1924 ocorreu a eleição para sucessão Municipal. Naquela pleito, porém, Quelé e família, assim como muitas outras pessoas da cidade, resolveram votar no Candidato da Oposição. A campanha foi violenta, e com frequência havia brigas que resultavam ferimentos e mortes. Assim, Quelé passou a ser considerado oposição ao Prefeito.
Nesse clima, Deodato Monteiro, Prefeito da cidade, e mais uma pessoa que lhe acompanhava, foram assassinados em Praça Pública. O acusado desses crimes foi Luiz Leão, integrante de uma família importante da região, o que lhe fez não ser importunado pelas autoridades daquele Estado. (Pouco depois Luiz Leão foi preso em Conceição, na Paraíba, onde praticou um delito, e ao ser transferido para a Cadeia de Pombal, por uma forte escolta, sob o Comando do Tenente Acendino Feitosa, tentou fugir e acabou indo a óbito)
Naquela época, estava em vigor um Convênio celebrado pelos Governadores do Nordeste, iniciado em 1912, e renovado em 1922, que autorizava as Polícias, quando em Diligencias para combater os grupos de Cangaceiros, ultrapassar as Divisas entre os Estados. Para esse fim, os Governos concentraram efetivos e meios materiais em pontos estratégicos, de onde poderia partir para diligencias na busca de grupos de bandidos. Na cidade de Triunfo, por exemplo, o Destacamento era composto por 70 Homens.
No dia 5 de fevereiro de 1924, poucos dia depois da morte do Prefeito Deodato Monteiro, as 6 horas da manhã, o Grupo de Lampião, composto por 45 bandidos, invadiu o sítio Santa Cruz, onde encontrou resistência de Quelé e mais 2 irmãos e 3 sobrinhos. Mesmo em grande desvantagem numérica, a família Furtado resistiu ao ataque por horas.
Pela distância do Sítio para a cidade, o barulho dos tiros poderia ser dali escutado. Apesar disso, e mesmo com 70 homens no Destacamento, a Patrulha só chegou ao local horas depois do início do tiroteio, quando o Grupo de Lampião bateu em retirada.
Nesse confronte, morreram um irmão e um sobrinho de Quelé.
A voz corrente na cidade, foi de que aquele ataque foi feito por encomenda de políticos ligados aos familiares do falecido Prefeito Deodato Monteiro. Mas, talvez se sentindo fracassado por não ter alcançado o seu objetivo, que era assassinar Quelé, o bando voltou a cercar o Sítio Santa Cruz, no dia 11 de fevereiro, portando, 6 dias depois do primeiro ataque.
Quelé não acreditava nessa possibilidade e não se preparou para isso. Assim, no segundo ataque ele só contava, mais uma vez, com 5 familiares, entre eles o seu irmão que sobreviveu ao confronto anterior.
O tiroteio foi intenso, com a família Furtado se protegendo no interior da casa a racionando o uso de tiros, com a estratégia de só atirar com a certeza de ter o alvo na mira. A situação chegou a um ponto em que a munição dos sitiados estava prestes a se acabar.
Os encurralados cessaram os tiros. Pairou o silêncio. Os bandidos ficaram na dúvida que eles tinham acabado a munição ou tinham armado um situação para provocar o bando a tentar invadir a casa e caírem em uma armadilha. Livino, irmão de Lampião, bradando desaforos, se dispôs a invadir a casa, para enfrentar os inimigos com um punhal, mas foi detido por Lampião, o que gerou um grave desentendimento entre eles.
A essa altura, foi se aproximando do local, a Volante do Destacamento, fazendo disparos de longe, como a avisar que estavam chegando, o que favoreceu a retirada do bando. Nesse segundo ataque, ocorreram as mortes de mais um irmão e um sobrinho de Quelé.
- A versão de Sargento que foi cangaceiro
Essa versão dos fatos até aqui relatados é narrada por Rodrigues de Carvalho, na sua obra Serrote Preto, na qual afirma que Quelé não conhecia Lampião. Outra versão, exposta por diversos autores, acrescentam que Quelé antes desses ataques de Lampião, teria participado daquele grupo e dele teria se afastado depois de uma grande desavença entre ele e aquele bandido.
Esse desentendimento entre Quelé e Lampião teria ocorrido pelos seguintes fatos:
Quelé dirigia um subgrupo de Lampião e foi procurado por dois Cangaceiros para integrar o bando. Quelé concordou e foi falar com Lampião que estava em outro local em companhia de outros cangaceiros, inclusive o bandido Meia-noite, que não concordou com a proposta de Quelé.
A discordância de Meia-noite, se dava por que os homens que pretendiam ingressar no bando, teriam assassinado um amigo dele, Meia-noite. Houve uma grande discussão entre Quelé, Meia-noite e Lampião, com troca de ameaças entre eles. Por essa razão Quelé deixou o grupo e Lampião passou a tê-lo como inimigo e vice-versa.
Os ataques do grupo de Lampião ao sítio da família de Quelé, aqui já relatados, ocorreram pouco depois dessa desavença.
Perseguido por Lampião e sem apoio político, Quelé resolveu ingressar na Polícia, com a finalidade de integrar as Patrulhas Volantes e combater o sanguinário bandido. Com essa finalidade ele passou um tempo da Polícia Militar de Pernambuco.
Nessa condição, Quelé foi subdelegado de um Distrito efetuou uma diligência para prender dois ladrões de cavalos, que reagiram, o que resultou na morte de ambos. Quelé, pediu exoneração, mas foi denunciado e teve decretada a sua prisão.
Por essa razão ele, no início de 1925, se refugiou em Princesa, onde obteve a proteção do Deputado José Pereira, chefe político da região e que depois do ataque do Grupo de Lampião à cidade de Souza, na Paraíba, em julho de 1924, tinha se declarado inimigo daquele bandido.
Inicialmente, Quelé integrou o grupo de capangas de José Pereira, e pouco depois, por interferência do seu protetor, assentou praça na Força Pública, denominação da Polícia Militar na época.
Clementino José Furtado ingressou na PM/PB, no dia 13 de maio de 1925, e na sua ficha de inclusão consta que ele foi incluído como 2º Sargento Comissionado, que era uma situação passageira, uma espécie de estágio probatório, ou seja, carecia de uma confirmação.
Nesse documento também constam dados que indicam que ele era filho de Manuel Furtado de Sousa e de Constância Benvinda da Conceição e nasceu em 22 de setembro de 1886, portando, tinha 39 anos de idade quando assentou praça. Não era comum alguém ingressar na Polícia com essa idade.
A inclusão de Clementino José Furtado foi formalizada pela nota publicada em Boletim, nos seguines termos:
Como esse documento apresenta dificuldade para a sua leitura, transcrevemos abaixo o seu conteúdo, referente a Clementino José Furtado.
” Seja incluído no estado efetivo da Força e do 2º Batalhão, no Posto de 2º Sargento, o civil Clementino Furtado, por serviços prestados a causa pública, no Comando de diligência volante em que se acha no Município de Princesa, a qual tem dados ótimos resultado.”
O Jornal A União do dia 18 de abril de 1925, noticiou que o Sargento Clementino estava no Comando de uma Patrulha Volante, na região de Princesa. Ou seja, antes do seu ingresso formal na Corporação, Clementino já era tratado como Sargento.
O 2º Batalhão era sediado em Patos e tinha sido instalada no mês da inclusãao de Clementino. Pelo texto do ato de inclusão, vê-se que, antes de ingressar na PM, portanto como civil, Quelé tinha comandado Volantes. Comparando-se os dados registrados na inclusão de Clementino e na de Manuel Felipe de Pontes, ocorridas no mesmo Boletim, nota-se quantos dados sobre Quelé, deixaram de ser consignados, o que revela que o ato foi feito às pressas.
Assim teve início a carreira do Sargento que foi cangaceiro.
Quelé comandou Patrulhas Volantes, sediadas em Princesa, e, nessa condição, fez muitas incursões em território Pernambucano, em perseguição a Lampião, no período de 1925 até 1928, quando o grupo de bandidos se retirou para a Bahia.
Em 1930, quando teve início a luta da Polícia contra o grupo de sublevados, formado na sua maioria por cangaceiro, liderados por José Pereira, Quelé não aceitou o convite do seu protetor para deixar a Polícia e se aliar ao grupo rebelde. Permaneceu na Polícia e participou dos combates contra os grupos de Zé Pereira.
Assim, o Sargento que foi cangaceiro, ficou fiel à Polícia.
O Segundo Batalhão, para onde Clementino tinha sido incluído, em 1925, foi criado em naquele ano e existiu até o final de 1926, quando deixou se constar no Quadro de Organização da Foça Pública e só voltou a ser criado em 1935
Durante o Governo de João Pessoa, o efetivo da Corporação foi reduzido e em 1929 e 1930 não existiam Batalhões, sendo todo efetivo distribuído em Companhias que eram subordinadas diretamente ao Comandante Geral. Pouco depois de iniciadas as lutas da Força Pública contra os grupos armados do Deputado José Pereira, a Força Pública criou um Batalhão Provisório para onde eram alistados voluntários exclusivamente para essas lutas.
Terminadas as lutas de Princesa, o efetivo ali empregado foi recolhido para Piancó, onde permaneceu até o início da Revolução, a qual aderiu de imediato.
No início de 1931, enceradas as ações relacionadas com a Revolução, todo efetivo do sertão se apresentou no Quartel do Comando Geral. O Batalhão Provisório foi extinto e todo o seu efetivo foi excluído. Em seguida foram recriados o Primeiro e o Segundo Batalhão. Assim, no dia 2 de abril de 1931 o Boletim do Regimento Policial, publicou a transferência de Clementino José Furtado para o Segundo Batalhão.
Depois de exercer, por vários anos, as funções de Subdelegado na região de Monteiro, Clementino José Furtado, mais conhecido por Quelé, o Sargento que foi cangaceiro, foi Reformado compulsoriamente, na graduação de 1º Sargento, no dia 18 de outubro de 1940, quando contava com 15 anos de serviço e estava com 54 anos de idade. Portanto, ele alcançou a idade máxima para permanecer na corporação como graduado. (Artigo 57 do Decreto 823 de 1937).
Quelé faleceu, aos 69 anos, no dia 26 de julho de 1955, em Monteiro, no Distrito de Prata, na Paraíba
Nas obras sobre o cangaço, os pesquisadores narram muitas diligências das Patrulhas Volantes comandas por Quelé, quase sempre focando atos violentos, por vezes covardes, por ele praticados, o que ocorria com menos frequência naqueles embates, envolvendo outras Patrulhas. Nesses relatos se sobressai a figura do Sargento que foi cangaceiro, como um homem muito valente.
Fatos dessa natureza, empanavam as meritórias ações da maioria dos policias, Praças e Oficias, de todas as Polícias do nordeste, que, mesmo diante das inúmeras dificuldades, cumpriram seus papéis com dignidade e extremos sacrifícios, defendendo a sociedade da sanha dos sanguinários bandidos, que alguns estudiosos tentam endeusar.
Veja também
https://cariricangaco.blogspot.com/2022/01/a-reputacao-de-clementino-quele-no.html